sábado, 14 de junho de 2008

Henrique Carvalho Ghidetti

Ainda nem comecei a escrever e já me assalta uma dúvida, delas tão farta minha vida (dilemas, abismos). Vivo paralisado e à força a correnteza me leva, pois tudo que é vivo, mesmo não querendo, move-se. De nada vale eu tentar persuadir o cosmo a parar e dar-me um tempo, o mundo gira, quer eu saiba, quer eu não saiba o que fazer. Mas agarro-me às dúvidas e sou arrastado vida afora, e tanta atenção dedico a elas, as dúvidas, que esqueço outros exercícios mentais e mesmo afazeres do mundo exterior. Alimento tanto estas indagações vazias, enquanto tudo mais morre de desnutrição dentro de mim.

No fim, além das dúvidas, nada sou, confortável refúgio dos que vivem sem aceitar o ônus de viver, ou, em termos mais claros, dos covardes.

Agora mesmo, estou procedendo segundo meu vício, digo, minha natureza evasiva. Desandei a falar de dúvidas e de quanto me diminuo diante delas só para me furtar à dificuldade do que venho tratar.

No caso presente, talvez eu até não esteja tão desprovido assim de razão. Deveras, o assunto é bem carente de substância e de pontos de vista a seu respeito. Apesar disso, é matéria que envolve substanciosas quantias e, portanto, tem o mirífico condão de agregar a seu redor pessoas e, conseqüentemente, sentimentos, interesses, conflitos, traições e coisas que tais, das quais sempre se pode tirar algo, ainda que, no mais das vezes, nada de muito notável ou edificante.

É certo também, compete-me dizer, que ao caso vai muito dos olhos de quem narra. Como seja, basta de preliminares que isso é vício de advogado, gente muito pouco recomendável.

A primeira coisa em que se pensou foi numa febre. Deveria ser criada uma febre, uma premência, uma urgência incoercível que gravasse a ferro em brasa nas pessoas uma necessidade sufocante, capaz, até mesmo, de levá-las a se contorcer em espasmos espumantes e porventura hemorrágicos, inundando calçadas com suor e provocando espanto nos demais transeuntes e indagações dos noticiosos (o que houve? qual o mal misterioso? por que o povo baba? por que baba o povo?).

E assim foi. Cenários paradisíacos, gente famosa (o in fica in, o out fica out), gente bonita, gente cara. Telas, páginas, ruas, bocas encheram-se de mensagens enaltecendo as inumeráveis qualidades, a inovação do conceito, o alto coeficiente de valor agregado, a intrigante apresentação, o revolucionário design, sempre muito mais digno de atenção que um simples desenho, a sedução quase obscena das formas, a penetrante sugestão. Emoção, surpresa, excitação, tudo, o mundo e muito mais, maravilhas e maravilhas ao alcance de quem possuísse a mais maravilhosa das dádivas do universo: o vácuo.

Isso mesmo, vocês não leram errado não. Criaturas enlouquecidas pelas ruas em frenética busca. Lugares houve, não poucos, em que se chegou a temer insurreição. Gente espumava e se estatelava no chão, houve pancadarias que duraram horas e encheram o asfalto de sangue, filas intermináveis em que se passava dias sem comer nem beber o suficiente, a ansiedade e o destempero decorrentes, tudo em acelerado crescendo, fácil dizer que para a explosão era uma questão de tempo, de muito pouco tempo.

Assim se fez. Houve uma reunião dos representantes do fabricante de vácuo com os do governo, tudo por baixo de recamadas camadas de pano. Daí saiu um acordo, secreto, não podia deixar de ser, e lucrativo, claro. De suas elevadas considerações de integrantes do cume da pirâmide social, em vista de seus destacados papéis no complexo e fascinante teatro das relações sociais humanas, e mediante sutis, mas não desprezíveis, movimentações na Suíça e alhures, com a consciência na mão chegou-se a formar uma monolítica unanimidade em face da torrente de potenciais benefícios contidos naquela estupenda novidade: que se escancarassem as portas do mercado da maneira mais arrombada possível de modo a receber o vácuo incondicionalmente.

Colocaram-se na ordem do dia imunidades fiscais e doações de terras públicas para a construção de fábricas e depósitos. É, porque nisto está o mais curioso: o vácuo ocupa espaço. Acordou-se inclusive o modo de atuar da polícia nos dias do lançamento, tudo devia ser feito de maneira que fomentasse uma violência e uma confusão que causassem o mínimo necessário de mortes, só o suficiente para dar assunto à imprensa.

Se o negócio é violência, ninguém mais recomendado que a polícia. Só não se deveria deixá-la atuar livremente, pois para efeitos promocionais bastariam, no máximo, digamos, cinco ou seis defuntos e dez ou doze feridos com gravidade. Se se deixasse o trabalho inteiro a cargo da força policial, muito provável que as cifras chegassem às centenas, talvez aos milhares.

Tudo na vida tem limite. Quase tudo.

Assim se fez. Compre, tenha, introduza, degluta, recuse imitações. Vácuo. Dois ou três morreram, uma grávida abortou, ossos e dentes quebraram-se.

Numa dessas festivas confusões de lançamento, um moleque de rua foi pisoteado na cabeça e, em conseqüência, acometido de uma cegueira temporária. Mais do que isso, na verdade, ele se viu, por um certo período, privado de toda noção do mundo. Privação temporária, que não pôde impedir, entretanto, que o que viesse a seguir tivesse caráter permanente.

Desprovido da visão e atordoado pelos vários pisões e pancadas recebidos, o menino saiu do tumulto cambaleante, desnorteado. Sem ver aonde ia, ele, ao invés de tomar o rumo da loja de departamentos que abrigaria o lançamento do vácuo (onde seria barrado, sem dúvida, maltrapilho e malcheiroso; todavia, nada perdia por tentar, não seria uma recusa a mais que o faria decepcionado com a vida), dirigiu-se para o lado oposto, deixou a segurança da calçada e acabou no asfalto da via expressa que passava fronteira ao lugar. Aliás, dizer que ele acabou no meio daquela grande avenida é bem apropriado, pois, mal colocou seu errático pé na pista, deu de cara com uma extensa e volumosa carreta que vinha em velocidade de cruzeiro, pronta para a estrada.

Ninguém notou o sucedido, nem o motorista da carreta, nem a própria vítima, nem terceiros. Os circunstantes olhavam para o outro lado, para dentro da loja, não querendo perder nenhum fato do grande lançamento do nada. O caminhoneiro, que também passara por ali de olho na grande agitação em frente à loja, seguiu seu trajeto totalmente alheio à pequena carcaça incrustada na grade do radiador. O titular da pequena carcaça, bom, esse, como já se disse, não estava em condição de perceber nem a própria existência. Só muitos quilômetros depois, ao ser ultrapassado por um automóvel cujos passageiros fizeram sinais insistentes apontando para a frente de seu veículo, o caminhoneiro decidiu parar o bruto no acostamento e conferir se tudo estava bem. Ora, lá estava o pivete, evidente que morto, uma parte colada na grade do radiador (tomara que não tivesse obstruído a ventilação), a outra pendurada no pára-choque. Pelo jeito, nada se estragara (no caminhão, bem entendido), nada acontecera que não pudesse ser removido por um bom jato de água. Com uma robusta chave de fenda, todo o grosso dos resíduos foi tirado e o sistema de refrigeração do motor parecia não ter sofrido nenhum dano. Os restos do moleque foram depositados no matagal à margem da pista, quando começassem a feder decerto seriam retirados, ou serviriam de repasto aos urubus.

Vai daí que ninguém relacionou os despojos infantis achados na beira da pista, a duzentos quilômetros da cidade, com a extensa lista de incidentes havidos por causa da estréia de Vac-o-Vac no mercado, em três tamanhos (single, upgraded, wholebunch), todos disponíveis em três versões (classic, sport, avant-garde).

Os meios de comunicação abriram seus melhores espaços para noticiar o estrondoso sucesso.

E olhe que grande parte de todo o trabalho promocional custou quase nada. Melhor que comprar a imprensa é comprar o governo e usá-lo na criação de fatos bombásticos, que forçosamente virarão notícia, infinitamente mais barato. Não que os meios não tenham recebido seu quinhão, mas, entendam, pelo mesmo tanto com que se compra todo um governo não se compra sequer um dia de publicidade em rede nacional, muito menos uma hora de notícia a soldo. Uma porção razoável de policiais, uma boa multidão bem aglomerada, sangue a gosto e todos ficarão alucinados para saber o que aconteceu. Nada.

Deveras, nada. Entretanto gente morreu e se feriu, entretanto lá estava ela, a massa, vidrada, babando de curiosidade. Muito mais inebriante que a felicidade é o terror.

Um sucesso o tal do vácuo, uma moda passageira que resultou duradoura, da qual derivaram tantas mais (peido engarrafado, a partir do qual se fabricaram os mais variados odores corporais envasados; ar colorido; pensamentos em caixinhas; sentimentos em tubos; etc.). O sujeito comprava seu tanto de nada, levava-o para casa, punha-o sobre o televisor e assim tinha algo para apreciar quando a programação estivesse muito ruim, quer dizer, quase sempre, ou sempre.

Claro que o pioneiro Vac-o-Vac não demorou muito sozinho no mercado, logo a concorrência despejou suas imitações, além de, nas calçadas das grandes cidades, terem surgido em bancas de camelôs falsificações pela quinta parte do valor do produto autêntico. Enfim, na tentativa de colher para si o que fosse possível daquele sucesso, muitos se puseram a oferecer ao público objetos inspirados (cópias, na verdade, mais ou menos explícitas) no nada original. O resultado, mais que previsível, foi que, graças aos diversos processos de exploração postos em prática e à própria intensidade com que se aplicaram tais processos, o conceito do nada, de si mesmo já meio falto de substância, esvaziou-se de vez.

A ralé enchia-se de vácuo e queria mais. Logo propagaram-se manias várias, com um inequívoco aroma de tentativa de manter vivo um cadáver, tais como a moda de romper o invólucro só para ouvir o vazio sendo preenchido. Coisa de adolescente, óbvio, mas, graças a modismos dessa espécie, a onda de consumo reavivou-se muitas vezes.

Numa determinada altura da evolução dos fatos, porém, percebeu-se que, de certo modo, a criatura fugiu ao controle dos criadores.

Não devia ser assim, mas foi, o vácuo não fora concebido para viver tanto. Quando planejaram sua inserção no mercado, tudo já vinha concebido dentro de uma estimativa de existência. O bom em lançar bagulhos sem nenhum valor intrínseco estava em ter um controle total, supunha-se, do fenômeno. Tudo dependia, antes, muito antes de tudo, de uma brutal concentração de poder econômico, apta a pagar o necessário para atrair a atenção dos meios para onde se quisesse. Primeiro se colocava a coisa em evidência e, quase em seguida, ela era deixada à míngua mediante a criação de um outro fato, de modo que não houvesse tempo de se formar uma concorrência ameaçadora no nicho aberto pelo lançamento precedente.

O importante, mais do que saber criar, era saber matar o que se criara. Com dinheiro bastante, o domínio do processo era virtualmente completo. Primeiramente, o produto devia não prestar para absolutamente nada. Segundo, sobre ele devia se criar uma muito convincente idéia de satisfação e bem-estar que fatalmente seria frustrada. Entretanto, quando isso acontecesse, ou seja, quando a frustração atingisse um número significativo de consumidores, aquele objeto já seria obsoleto, esquecido, e em seu lugar haveria uma novidade muito mais interessante e oca do mesmo jeito.

Porém nada foi capaz de superar o vácuo. Sobre ele fundou-se todo um sistema de valores, regedor das idéias em diversos campos da atividade e do pensamento humanos: diversão, comércio, comunicação, direito de propriedade, ética, etc. Ao lado da família, do estado, da religião e dos meios de comunicação em massa, o vácuo se alçou à posição de instituição basilar da sociedade. Outros produtos vieram, mais dinheiro se ganhou, e o vácuo permaneceu, difícil dizer ao certo por quê, mas pode-se afirmar, sem muito risco, que nele estava a expressão de algo muito caro ao público. Vá saber.

20.12.7